quinta-feira, 28 de março de 2024

VAMOS FALAR DOS VOTOS DA EMIGRAÇÃO 1 - Esta ano falou-se muito dos votos da emigração, quer nos "media" generalistas, pouco preocupados em aprofundar a matéria, quer pela voz dos mais distintos comentaristas, de quem se pode dizer mais ou menos o mesmo. Só foi tema porque os escassos quatro deputados da emigração podiam decidir a contagem final, e porque o Chega ganhou dois deputados, um deles no lugar de Santos Silva. Na verdade, o Presidente da Assembleia fora derrotado no interior do PS, pelos seus correligionários, que não lhe perdoaram ter apoiado José Luís Carneiro, abandonando-o à sua sorte num círculo demasiado ingrato. Na presente conjuntura, qualquer outro socialista sofreria o mesmo destino. É um erro (comum e repetido) desvalorizar a conjuntura na análise das tendências de voto na emigração, como se não acompanhassem as tendências que se desenham no país. Admito que haja, aqui e ali, fatores internos que influenciam escolhas, mas as diferenças, de comunidade para comunidade, dentro e fora da Europa, são comparáveis às que existem de região para região, no continente e nas ilhas atlânticas. Vejamos o historial de votações, nos círculos da Europa e de Fora da Europa, no último meio século. Na Europa, a regra foi a divisão de deputados entre PS e PSD, com o PS a contabilizar o maior número de vitórias. Contudo, as maiorias de Cavaco e Silva, no país, repercutiram, de imediato, nas comunidades, deixando, ao menos uma vez, o PSD a escassos votos de ganhar os dois deputados. E a última grande maioria (de António Costa) deu, efetivamente, ao PS o pleno de deputados. Era, por isso, expectável a enorme quebra da votação no PS e o substancial aumento do Chega, a prejudicar a recuperação do PSD, mas surpreendeu o seu 1º lugar na Suíça e no Luxemburgo. O que distingue a emigração nestes dois países? Essencialmente, o muito menor grau de integração na sociedade local, revelado pela intenção de regresso, pelo envio de remessas (proporcionalmente muito superior ao da França), pela maior sensibilidade ao abandono pelas autoridades nacionais. A retirada de direitos adquiridos pelo Governo Costa, nomeadamente, no setor da Saúde, (restrições impostas no acesso ao SNS...) teve um efeito tremendo! Tal como no Algarve, a votação maciça na extrema-direita, foi uma forma de protesto! Fora da Europa, à semelhança da Madeira, e de certas zonas do norte e centro do continente, o PSD venceu sempre - e agora, também. De início, repartia os deputados com o CDS, destinatário dos votos da direita. Com o declínio deste partido, esse voto passou, como “mal menor” para o PSD, e acaba de “descobrir” o Chega, (aliás, numa lista encabeçada por um ex-PSD de São Paulo…). O PS tinha fraquíssima adesão, correspondente a franjas ideológicas de esquerda. No Governo, contudo, surgiu com uma face de moderação e pragmatismo e foi crescendo, graças a Secretários de Estado das Comunidades, mais pró-emigrantes do que o próprio partido (penso em José Lello, em José Luís Carneiro). Pela primeira vez, em fins do século XX, e, por duas vezes, recentemente, conquistou um deputado neste círculo, (no 2º lugar, onde, dantes, ficava o CDS). 2 - Em 2024, o PSD ganhou o Círculo Fora da Europa, tendo por cabeça de lista, um antigo Secretário de Estado de boa memória, José Cesário. Conseguiu resultados esmagadores em Macau e em Israel, e amplas vitórias nos EUA, no Canadá e em toda a África. No Brasil, porém, só ganhou em São Paulo… Em certa medida, esta perda para o Chega é culpa do PSD, que promoveu Ventura na famigerada candidatura à Câmara de Loures, tal como o novel Deputado daquele partido. Um acalentado por Passos Coelho, outro por Rui Rio, (como nº 2 da lista anteriormente encabeçada por Maló de Abreu). Digamos que das últimas lideranças do PSD só se salva Montenegro, com o seu já histórico "não é não" à extrema-direita... A nata dos comentaristas políticos não destaca esta evidência, prefere fantasiosas explicações da adesão dos nossos emigrantes a cultos evangélicos, que sustentam o bolsonarismo. Que ideia! Muitos portugueses pertencem, por razões ideológicas, às hostes de Bolsonaro, não por causa do sustentáculo evangélico, mas apesar dele... Constituem, certamente, a mais católica, apostólica e romana ala desse movimento extremista. E são, fundamentalmente, anti- Lula!. Por isso, o vergonhoso ataque do Chega ao Presidente Lula da Silva na Assembleia, em 2023, transformou-se, no seu mais eficaz ato de campanha eleitoral, em 2024. O vídeo da pavorosa cena parlamentar passou, constantemente, nos meios de comunicação e propaganda, que os bolsonaristas puseram ao serviço do partido irmão. E, se houve coisa prejudicial a Santos Silva, na campanha que "virou brasileira", foi o seu (louvável) papel nesse incidente de dimensão internacional. Nos EUA, ao contrário do que alguns temiam, o "trumpismo" pouco pesou no voto emigrante, porque os portugueses separaram as águas, e não "americanizaram" o sufrágio. 3 - Somos um país de emigração tradicional, que teima em abordar este fenómeno de modo ligeiro e estereotipado. Poucos foram os comentaristas que denunciaram outros aspetos do processo eleitoral, designadamente a chocante sub-representação parlamentar dos emigrantes. Marques Mendes foi exceção ao salientar que, nas comunidades do estrangeiro, 334.000 votos elegeram quatro deputados, enquanto, por exemplo, em Leiria 274.000 têm direito a dez, e em Coimbra, 242.000 a nove.... O problema vem de trás, e agravou-se, desde que o recenseamento foi, (e bem!), alargado a cerca de um milhão e meio de expatriados, os que têm cartão de cidadão atualizado. Foi um passo na direção certa, mas a exigir outros ajustes. Com caráter urgente, destacarei três: - O aumento do número de deputados da emigração - A eliminação, no voto postal, da exigência de junção da fotocópia do BI ou do CC, em envelope separado. Em alguns países, mais da metade, e, no conjunto, cerca de 40% dos votos expressos foram anulados por incumprimento deste prescindível requisito. É inaceitável! - A facilitação do voto, conjugando as diferentes modalidades possíveis, voto presencial, por correspondência e eletrónico (solução que eu já defendia enquanto deputada, há mais de duas décadas...). . Os últimos dois anos foram, neste domínio, anos completamente perdidos, por inércia de um Governo largamente maioritário. Esperamos que o futuro Governo, apesar da sua escassa maioria, se empenhe em alcançar os consensos para soluções, que são uma exigência democrática. Obstaculizar estas reformas equivale a retirar, na prática, o direito de voto reconhecido, na letra da lei, aos portugueses de estrangeiro. Equivale a manter o seu tratamento desigual, a sua "capitis diminutio", uma cidadania de segunda, cinquenta anos depois do 25 de Abril de 1974..

terça-feira, 26 de março de 2024

DANÇA DE EMOÇÕES – UM PAR IMPROVÁVEL Maria Antónia Jardim consegue surpreender-nos, em cada nova criação que nos oferece… Agora com “A Dança das Emoções – Um par improvável” , pequeno conto, que a ousadia da imaginação e a mestria de tornar simples uma escrita vertiginosa transformam em grande aventura literária. Parte a Autora da contemplação de um quadro, “A dança”, quadro maior, (e não só pela sua dimensão física), de Paula Rego, génio da pintura universal e admirável narradora de enredos traçados a pincel… “estórias” de vivência feminina de que se faz a” História das Mulheres”, trazidas das margens para o centro do mundo, com todo o seu poder subversivo da velha ordem opressiva e misógina. A “Dança” na praia, à luz do luar, converte-se em cenário de uma narração fantástica, que poderia ter servido de mote para uma outra tela de Paula Rego, que, por sua vez, a imaginação cúmplice da escritora recriaria, no seu estilo gracioso e rápido… Uma dança entre duas artes em que o feminino visivelmente se exprime! Nas palavras sobre papel de Antónia Jardim vemos corroborada a mensagem pictórica de Paula Rego, que ela própria definia, sem rodeios: "O que é isso de uma arte sem género? De uma arte neutra? Há histórias à espera de serem contadas e que nunca o foram antes. Têm a ver com aquilo em que jamais se tocou: a experiência das mulheres." Sim, as personagens deste conto encantatório entram na dança de Paula Rego, entram e saem, muitas vezes, com a marca inconfundível da autoria feminina. Numa dança de emoções, (do sentir e desejar, dança de idade e de gerações, de realidade e ficção), no romance como na tela, a Mulher tem o papel dominante. Chama-se Kristal, vagueia pela Londres de Paula Rego, à procura de um destino, e vai tocar a lua com a sua mão jovem. A lua cheia, lua/mulher, lua de mel… com Raul, o “alter ego”, homem/luar. Ler um livro (precisamente como olhar uma tela), é um exercício de plena liberdade, uma apropriação consentida de sensações, que, finalmente, são só nossas. Na gostosa leitura da “Dança de Emoções”, deixei-me envolver no ritmo da música, andei redopiando de página em página, e entrevi no enlace de Kristal e David, o de Tom Baxter e a Cecília, de “A Rosa Púrpura do Cairo”. Depois, ao táxi em que Kristal é transportada a cenários de pinturas célebres, associei o táxi da “Meia noite em Paris”, que leva Gil a viajar no tempo, até à cidade de outras eras, ao encontro de Cocteau, Gertrud Stein, Zelda e Scott, Picasso, Braque, Dali, Buñuel… E, assim, Maria Antónia, Paula e Woody, na minha feérica triangulação, se reúnem, em Londres, num improvável e fabuloso “Candlelight Concert”… Maria Manuela Aguiar

domingo, 25 de fevereiro de 2024

LEMBRAR MARIA ARCHER E MARIA LAMAS NO 8 DE MARÇO

Mulheres que lutaram, pela palavra e pela ação no tempo em que em Portugal não podíamos comemorar o Dia Internacional da Mulher Uma excelente iniciativa dos nossos amigos franceses.

sábado, 24 de fevereiro de 2024

Maria ARCHER - COMEMORAÇÕES 2024

MARIA ARCHER – UMA LEITURA FEMINISTA in "Jornal de Letras" 1 –Maria Archer, nascida no último ano do século XIX, era ainda criança, quando o movimento feminista e republicano dava os primeiros passos, e uma jovem, ausente nas terras do império, quando o seu ímpeto esmorecia, e o cerco da ditadura apressava a sua desagregação. Contudo, estava destinada a continuar, solitária e audaciosamente, esse legado de luta contra o obscurantismo, que condenava a metade feminina à incultura, ao enclausuramento doméstico, à subserviência. Ela própria cumpriu a utopia feminista da “libertação da mulher” pela Cultura e pela autonomia económica, ao fazer da escrita profissão e instrumento de denúncia da situação das suas contemporâneas numa sociedade anacrónica, desumanizada, misógina. Feminista assumida e praticante, ousou romper com o conservadorismo da família aristocrática, por fim a um casamento infeliz, e viver, sobre si, do jornalismo e das Letras - mulher livre num país sem liberdade! Em Portugal, como na Suécia, a atividade literária e jornalística foi um meio privilegiado de combate contra os preconceitos e desigualdades de sexo. Entre nós, teve a pré-história em oitocentos, a fulgurante afirmação coletiva na 1ª República, e um inesperado apogeu com Maria Archer durante o salazarismo. Ninguém melhor do que ela soube recriar, de uma forma realista, crua e eficaz, a atmosfera social e política que moldava o mundo segregado das mulheres. Como dizia Artur Portela, "a sua pena parece por vezes uma metralhadora de fogo rasante”. Ninguém melhor do que ela escrutinou e denunciou a violência velada dos brandos costumes da sociedade portuguesa, do relacionamento de sexo ou de classe, homens e mulheres imersos na nebulosa de estereótipos, dogmas e falso moralismo, de prepotência e submissão... Ninguém melhor do que ela desconstruiu a imagem da "fada do lar", laboriosamente erguida sobre a falácia da harmonia de desiguais (em que, noutro plano, se baseava a ideologia do regime corporativo), e dos apregoados bons costumes, assentes no autoritarismo e subjugação ao "pater familias" no pequeno universo caseiro, e ao ditador no círculo alargado do País. O rigor e a qualidade literária destes retratos de mulheres (e da sua circunstância), a densidade humana das personagens, potenciavam a força subversiva dos romances e contos de Maria Archer, e desencadearam o furor censório do regime…De todas as mulheres resistentes que a ditadura perseguiu, nenhuma pagou um preço tão alto como esta Maria, verdadeira precursora das “três Marias” da década de setenta. É Maria Teresa Horta quem no-lo diz, em 2001, no prefácio da reedição de “Ela é apenas Mulher”: “Com Maria Archer, a tática foi diferente: Apagaram-.na […] arrancaram o seu nome, pura e simplesmente, da História da Literatura Contemporânea Portuguesa”. Acusação de misoginia, que visando o regime, não deixa de abranger todos quantos não perdoavam à romancista o ter ultrapassado os limites que a própria História Literária, dominada por homens, reservava às mulheres escritoras… Maria Archer foi forçada a partir para um longo exílio em São Paulo, de onde retornaria, envelhecida e doente, para morrer, em Lisboa, no esquecimento geral, sem, todavia, ter perdido a esperança na “justiça do tempo”. Esse tempo chegou! E a justiça fez-se, primeiramente, pela via de uma leitura feminista da sua obra, que em nada prejudicou a descoberta da pura qualidade literária da sua escrita, aberta a uma pluralidade de abordagens. No ano do seu 125º aniversário, a segunda vida de Maria Archer desabrocha em comemorações que se cruzam com as do cinquentenário da revolução de Abril. Ela emerge, agora, como figura ímpar para contar a história de um passado opressivo, pautado por regras viciadas de jogo social e político – jogo que ela desvendou e se recusou a jogar. Dessa época nos dá, nas palavras de Maria Teresa Horta, “o único retrato autêntico, de corpo inteiro”, e, na nossa, ressurge como mulher de todos os tempos. De facto, escreveu história do feminismo com a própria vida: o seu exemplo vale para sempre e a história é interminável. Manuela Aguiar

Maria ARCHER Nota sobre o programa de comemorações - 2022 in "As Artes ebtre as Letras"

No próximo dia 23 de janeiro completam-se quarenta anos sobre a morte de Maria Archer. É uma data que será comemorada, no Porto, pelo Círculo de Culturas Lusófonas Maria Archer, ao longo do ano, com uma programação de atividades focada nas múltiplas facetas da sua vastíssima obra, e na sua vida, repartida no espaço da lusofonia, num constante cirandar entre realidades culturais de que se tornaria intérprete e mensageira privilegiada. A sessão de abertura terá lugar no sábado, dia 22, na Galeria da Biodiversidade – Centro de Ciência Viva, às 16.00, com uma conferência de Deolinda Adão (Universidade da Califórnia, Berkeley) sobre “Sussurros de vozes no silêncio – o caso de Maria Archer”, seguida da inauguração de uma exposição de pintura comissariada por Ester de Sousa e Sá, em que os artistas são convidados a falar da sua relação com Maria Archer, tal como a expressam nas sua telas A 22 de fevereiro, o Instituto de Línguas Comparadas Margarida Losa e o Círculo de Culturas Lusófonas Maria Archer, (com uma Comissão Organizadora de que fazem parte Marinela de Freitas, Lurdes Gonçalves, Nassalete Miranda e eu própria), convocam uma audiência internacional de interessados para um colóquio "on line" de homenagem a Maria Archer, que reúne investigadores portugueses e estrangeiros dedicados ao estudo da obra de mulheres portuguesas que se destacaram no panorama das Letras e Artes e nos movimentos proto feministas e feministas, de finais do século XVIII aos nossos dias. Com o título, "Maria Archer e outras Mulheres de Referência e (Ir) reverência", se pretende sublinhar o que, para além da diversidade de épocas, lugares e contextos sócio-culturais, todas têm em comum. Durante o primeiro trimestre deste ano, no lugar e no período de abertura ao público da Exposição de Homenagem a Maria Archer, que vai até 31 de março, está previsto um ciclo de colóquios presenciais, com regularidade quinzenal, subordinado ao tema " Mulheres que mudaram o mundo dos homens". Na incerteza que a crise pandémica traz ao nosso quotidiano, não está ainda fechada a planificação do ano, que, assim, continua aberta a novas propostas e sugestões à volta das grandes causas de Maria Archer: a criação literária e artística das mulheres como expressão de liberdade e dimensão de cidadania ,a compreensão da alteridade, a aproximação dos povos da lusofonia, no trânsito da dominação colonial num novo espaço policêntrico, o feminismo como humanismo, as fronteiras do feminino e a desocultação do seu lugar na História. Maria Archer viveu num presente de que ela já era o futuro, foi incompreendida, perseguida pelo regime, exilada, e, mais ainda, como escreveu Maria Teresa Horta "deliberadamente apagada da História". No ocaso de uma brilhante trajetória que a doença encurtou, já não encontrava ânimo para combater o esquecimento a que fora sentenciada, mas acreditava que novos tempos lhe fariam justiça. Primeiro nos meios académicos do Brasil, agora também já em Portugal, uma plêiade de investigadores veio dar-lhe razão, cumprir a sua esperança. A comemoração desta efeméride, no Porto, em Lisboa, em São Paulo, e um pouco por todo o lado, é uma etapa do seu percurso de retorno. Quarenta anos após a sua partida, Maria Archer está de volta, para ficar na História das Letras e do jornalismo, da literatura colonial, da democracia, pela qual luta na primeira linha de intervenção, e do feminismo, cujo bandeira, com raras mulheres, empunhou em meio século de ditadura e obscurantismo. Os portugueses vão descobrir que tão fascinante é a obra como a vida de Maria Archer

BALBINA - O LUGAR DAS MULHERES NAS ARTES

A PINTURA DE BALBINA MENDES – O LUGAR DAS MULHERES NAS ARTES Balbina Mendes ocupa um lugar de primeiro plano na Arte pictórica em Portugal, através de um trajetória feita de originalidade e de inovação, numa constante travessia de fronteiras artísticas - sempre em movimento, numa viagem de procura sem fim, pelo gosto de lançar a si própria desafios, um depois de outro, através da experimentação de ideias, de temáticas, de técnicas, de materiais, com a ousadia de sempre, a segurança dada pela maturidade, e a invariável insatisfação, essência de uma obra em que o talento inato se expressa, reinventando-se. Um percurso raro nos vários ângulos em que o podemos considerar, desde logo porque começou numa pintura de matriz etnológica, que recuperava arquétipos primordiais emergindo, revistos e recriados em toda a sua magia, em telas de grande dimensão e impacto. A Natureza, as vivências, os costumes da sua terra são, assim, transpostos, num universo de interlocução que foi crescendo, à medida que a própria Balbina ganhou notoriedade e reconhecimento, em exposições individuais nas mais prestigiadas Galerias. As suas espantosas “Máscaras Rituais do Douro e de Trás-os-Montes “ fizeram história, simultaneamente a do lugar da sua infância, a das suas gentes e tradições, perdidas e achadas no tempo, e a dela própria, inconfundível intérprete e narradora de memórias e rituais identitários. Não menos importante é sublinhar a sua capacidade de se impor em grande mostras individuais, o que é, por ora, entre nós, coisa que só está ao alcance de um escol de mulheres pintoras. Embora a perceção comum não o reconheça mantém-se, ao nível de mega exposições com um só nome no cartaz, um largo predomínio masculino, enquanto nas coletivas, ou nas que são exibidas, mais modestamente, em pequenos redutos, elas ultrapassam já os homens, num avançar gradual, como se estivessem, ainda, em difícil transição do espaço privado para o público… É um exemplo que poderemos extrapolar, em muitas outras áreas, a nível nacional e internacional, constatação eficazmente determinante na criação do movimento pela Arte no Feminino, que, no último quartel do século XX, teve uma das suas líderes mais insignes e arrojadas em Paula Rego, símbolo máximo da nossa pintura, cujo recente passamento foi ocasião de a enaltecer e entronizar no panteão dos imortais. Nas suas próprias palavras: "As minhas pinturas são pinturas feitas por uma artista mulher. As histórias que eu conto são histórias que as mulheres contam. O que é isso de uma arte sem género? Uma arte neutra?". [...] "Há histórias à espera de serem contadas, e que nunca o foram antes. Têm a ver com aquilo em que jamais se tocou-as experiências de mulheres". Uma tomada de consciência e um discurso com que a vanguarda feminista dessa época incorporou o plano da expressão artística na globalidade da sua luta - discurso que, diga-se, neste como em qualquer outro campo, é tudo menos pacífico. Mais consensual será, certamente, a exortação de Gisele Breitling em favor de "uma nova e verdadeira universalidade em que o feminino assuma o seu lugar de direito e o masculino as suas verdadeiras proporções". Guardo-me, aqui, de entrar na complexa questão do modo como o "género" se exprime, (com caraterísticas próprias ou comuns e indistintas), ficando-me pelo que não pode ser contestado: o masculino avulta, desde tempos imemoriais e permanece como autêntico "padrão", enquanto o feminino é visto como "alteridade". Por outro lado, o sucesso das "mulheres-exceção" não deve deixar no esquecimento a persistente desigualdade de uma maioria, que as estatísticas, na fria linguagem dos números, denunciam. Como escrevia Armando Bouçon, no catálogo da 1ª Exposição de “Mulheres d’ Artes”: "Uma análise correta de toda a história da Arte dá-nos uma perceção muito transparente de como o campo das artes plásticas foi ocupado durante muitos séculos pelo género masculino". Foi. E, se atentarmos nas diferenças de visibilidade, segundo o sexo, continuará a ser, ao menos na medida de uma persistente desproporção. É um desequilíbrio que pode debelar-se de muitas e diversas maneiras… No panorama português, Balbina Mendes tem, a meu ver, contribuído, poderosamente, para que as mulheres acedam, na vida cultural do país, ao seu "lugar de direito". Fá- lo, ocupando, simplesmente, esse lugar, com força anímica e qualidade de sobra, sem em nada se julgar discriminada, sem se sentir diferente, isto é, do lado de lá de uma linha de separação... É um caso a seguir, no campo das exceções, que, na minha ótica, tão devagar se vai alargando. Balbina faz parte das mulheres que, à partida, se sentem consideradas como iguais, e cuja atitude de despreocupação com disparidades de género, contém, implícita, a intransigente exigência de tratamento igualitário! À margem de manifestos reivindicativos, alcançaram, por si, as metas que o movimento se propôs e propõe, e, assim, afinal, o reforçam. E será que a proclamação da especificidade de género, pode, no limite, paradoxalmente, dar azo à persistência de formas larvadas de discriminação?. É uma dúvida pertinente. A "arte com género" de que fala Paula Rego, pode, ou não, abaixo do patamar do génio universal a que ela subiu, transformar-se , de facto, não em sinal vanguardista de contracultura, mas em âncora de estereótipos de género, conotando o feminino com características convencionais que são, em sociedades ancestralmente misóginas, uma menos valia? O ponto de interrogação vale para qualquer setor... Recordo o crítico literário João Gaspar Simões, que, ao elogiar a força imanente da prosa de Maria Archer, o realismo puro e duro com que ela aborda temáticas ousadas, a qualificava não como uma grande escritora, mas como "um grande escritor" ... E não é verdade que a poetisas consagradas, como Sophia de Mello Breyner, ou Ana Luísa Amaral, preferimos chamar poetas? Ambíguo cumprimento, a que subjaz a conceção da masculinidade intrínseca do cânone... Certo é que, para esta escola de pensamento, Balbina é uma das grandes pintoras que merece, por inteiro o cumprimento, ainda que, pessoalmente, se não queira rever na categoria de "grande pintor". A sua arte não procura rivalizar com quem quer que seja, nem obedece a ditames ou limitações de qualquer espécie, segue numa trajetória ascensional de inovação da estética e policromia, do ensaio de técnicas, da fusão de materiais...É genuína e livremente Ela, transmutando para a pintura a experiência ganha nos muitos espaços geográficos e culturais que a sua vivência atravessa e o seu olhar penetra. É única e inconfundível. Se me é permitida uma outra adjetivação, direi: carismática! Uma palavra que tão perfeitamente se ajusta a Autora como à globalidade da sua obra. Balbina é uma admirável contadora de histórias de vários tempos, do tempo presente a tornar-se passado, ou do passado em dinâmicas e impulsos que o trouxeram até nós, num rasto longo de evocações de festividade populares, rituais, crenças, valores revividos e reconfigurados em toda a sua magia e em todo o seu mistério. No percurso imparável de Balbina, para mim, no princípio era o rio... porque a conheci na exposição em que nos oferecia uma verdadeira crónica pictural do Douro, deslizando entre margens, da nascente até à foz, incorporado na beleza encantatória de paisagens, onde as gentes apenas se pressentiam, sem se verem... . Reencontrei-a, depois, em outro e surpreendente ciclo temático, na exposição das Máscaras Rituais do Douro e Trás os Montes, em que os homens se faziam presentes, mas ainda sem se verem... Era o início de um tropo narrativo em torno da máscara, incursão às raízes ancestrais, entrelaçamento telúrico de emoções e saberes, recriados nos traços dos seus pincéis, em explosões de cor... Não resistindo a voltar a uma perspetiva feminista sobre o ineditismo das suas escolhas -perspetiva que, não sendo certemente a de Balbina, me permito ousar - noto a esplêndida audácia com que se apodera, para a eternizar em arte, da tradição masculina da máscara, símbolo, por excelência, da superioridade e camaradagem de sexo, da festa e do cerimonial rigorosamente interditos à mulher... É um prenúncio, um sinal da força subversiva e libertária da sua aventura artística. Logo depois, vai ultrapassar uma última barreira, no momento em que a fragmentação ou transparência das máscaras põe a descoberto... rostos femininos! Uma definitiva ruptura com o interdito. Transgressão, que Paula Rego, sem dúvida, saudaria com “o gozo pela inversão e pelo desalojar da ordem estabelecida". Por isso, Balbina Mendes poderia estar, se quisesse, entre as referências do movimento emancipatório de contracultura feminina nas Artes, na senda da emblemática Paula sobre quem Ana Gabriela Macedo afirma: [...] ela questiona continuamente os chamados "corolários naturais" da diferença de sexos, bem assim como a suposta "ordem natural das coisas", que se traduz na passividade, dependência e submissão, desmistificando o discurso estético e desmascarando o seu papel eminentemente ideológico e as relações do poder, que aí se encontram camufladas [...]. Na sua mais recente exposição, intitulada "Segunda pele", o engenho narrativo de Balbina não nos revela, antes adensa o segredo dos jogos entre as faces desocultada e as suas máscaras, mas revela-a, definitivamente, como assombrosa retratista, do rosto, das suas metamorfoses, do tangível e do intangível. Confirma o seu incessante questionamento sobre o ser, as suas mutações e aparências. É, agora, na Literatura que busca inspiração, glosando, em enigmáticas efígies, motes Pessoanos. As respostas que encontra na tela são sempre fonte de sucessivas interrogações, de demandas inspiradas na heteronímia do Poeta, ou até, talvez, simplesmente na duplicidade do “eu” de cada um de nós . Como dizia Maria Anderson; "Qualquer pessoa ficciona a sua própria identidade, Não nos ficcionamos sempre da mesma maneira. Vamos mudando o guião". Ou, secundando Maria Velho da Costa, nos poderemos interpelar: "Quem sou? Talvez seja quem vou sendo..." A pessoa. A persona… Para onde vai, Balbina Mendes? Para onde nos levará , no ímpeto de romper limites, a grande cultora de saberes arcanos e enigmas do espírito, em diálogo introspectivo com as Artes, com a Vida, connosco, nas suas cada vez mais fascinantes mensagens visuais? Maria Manuela Aguiar Espinho, junho de 2022

SÉRGIO C - Há 5 anos, no Milénio, de Toronto....

SÉRGIO, UM TREINADOR PORTISTA, UM TREINADOR À PORTO  1 - Para mim, festejar um título é sempre subir ao céu (ao céu muito azul), mas o campeonato ganho neste maio de 2018, foi especialíssimo! Fez renascer a esperança no recomeço de um longo ciclo de vitorioso, e acordou memórias da primavera de 1956, de um outro campeonato alcançado contra a predestinação, o impossível  - ou, talvez, afinal, simplesmente, forças mais ou menos ocultas. 1956! A primeira vitória azul e branca no meu tempo de vida, quando o centralismo nacional ditava o vencedor antecipado, com regras não escritas, mas cumpridas (como nas eleições em ditadura).  Só os da minha geração (privilégio da idade) podem comparar, em tudo o que têm de espantosamente semelhante, duas equipas separadas por mais de sessenta anos de história - a de Yustrich e a de Sérgio Conceição. Em ambas, sobressai o treinador, que as impulsiona à sua imagem, unindo um coletivo, em que todos são iguais. Ambas entram em campo de rompante, e partem para o ataque, com a intensidade que o líder lhes inculca, sem nunca vacilar ou desistir. Ambas se apresentam desfalcadas de nomes sonantes, parecendo de menos para o feito enorme que se lhes exige. De fora, poucos acreditavam que o conseguiriam, porém, eles - Sérgio, como Yustrich, e os seus  jogadores - não tiveram dúvidas, só certezas de alma! Se quisermos ir ao pormenor, poderemos ver no veloz gigante que é Marega um avatar de Jaburú, no artista que é Brahimi o de Hernâni, e em Sérgio Oliveira o de Monteiro da Costa, "quinta essência"  da entrega à luta e de orgulho nas cores da camisola. 2 - Um regresso ás origens... de resistência à adversidade e ao desfavorecimento dos poderes instalados. A primeira vida do FCP decorreu, invariavelmente, assim. Mais obstáculos, mais dificuldades, forjaram o seu  caráter. Triunfos com a dimensão da utopia, criaram a sua mística. O sumptuoso troféu que o Povo da cidade lhe ofereceu quando, num "match" particular, derrotou o nº 1 do mundo, um Arsenal no apogeu, era já o prenúncio de uma ambição sem limites, que havia de levá-lo ao patamar proibido  - o de campeão do mundo de clubes. A segunda vida do FCP começa, (como não poderia deixar de ser), numa revolução libertária, em 1974. A revolução chegou ao futebol, com uma inesperada "viragem a norte" e a marca de Jorge Nuno Pinto da Costa. [44 anos depois, note-se, semelhante rotura está ainda por fazer na política, onde o centralismo, herdado da ditadura, mantém o cerco às atividades económicas, culturais, sociais, fora de Lisboa].Em liberdade, o FCP pode ser igual, Em igualdade, pode ser superior. Do plano nacional ao internacional. Não era milagre, era organização, modernidade, rigor, liderança...  As estruturas organizacionais criavam valores, convertendo jovens desconhecidos, vindos de todo o lado, em estrelas, apostando em técnicos e treinadores portugueses, que ganharam fama universal - na senda de Artur Jorge e de Mourinho. Dir-se-ia o "toque de Midas"!  3 - A época de ouro teve o seu ocaso numa longa e dura a travessia do deserto de títulos. Em 2917, com o plantel depauperado e um orçamento zero para contratações, por imposição das regras de  "fair-play" financeiro, parecia não haver treinador de renome que aceitasse um convite do FCP. E eis que surge em cena um "voluntário", capaz de trocar o certo pelo incerto, disposto a reduzir a metade o valor do contrato que o ligava a um dos grandes de França e pronto para a missão impossível de salvar o Dragão - o seu clube. Sérgio, o resistente, que desde menino soube viver com pouco, conviver com a injustiça e nunca se dar por vencido. Não era, ao que consta, uma primeira escolha, mas foi, sem dúvida muito melhor do que qualquer outra teria sido.À chegada, deixou bem claro que vinha para ensinar, não para aprender. E assim foi. Consigo trouxe, de facto, não só o saber muito de futebol, em termos teóricos e práticos, mas também "a arte de ensinar a arte", de levar cada um a redescobrir-se, na sua capacidade de evolução, não apenas individual, mas como parte de um todo. Não é para qualquer um  - é só para génios! Como Mourinho, que, nas primeiras declarações, afirmou que, no ano seguinte, iria fazer da equipa do Porto campeão - e fez! -  para tal lhe bastando dois reforços do Leiria e um do Setúbal, contratados a custo reduzido, Chamavam-se Derlei, Paulo Ferreira e Nuno Valente, aos quais se juntou o incomparável Ricardo Carvalho, que andava emprestado.   Paradigmático, na tradição de Mourinho, o modo como, inteligentemente, conseguiu adaptar as disponibilidades à sua ideia de jogo (ou as táticas às disponibilidades...), como transformou em mais valias, jogadores " descartados" pelos seus diretos predecessores. Recuperação profissional, recuperação humana, numa rota de transcendência, de emoção, que, de imediato, passou às bancadas, e arrastou multidões no movimento imparável para a vitóriaAssombroso o ensinamento de Sérgio, que vale tanto para avaliar o passado recente, (nomeadamente, a "performance" dos seus antecessores) , como para preparar o futuro, de preferência com ele. Sérgio Conceição foi um jogador que admirei imensamente e um treinador em quem sempre acreditei  - o que, em tempos recentes, só com Villas Boas acontecera. No que estava bem acompanhada!, Antes de ser, nesta segunda veste, entronizado na história do FCP, já ele era o herói do povo. E o povo também jogou neste campeonato!  in Milénio, Toronto, maio 2018